A sociedade contemporânea, chamada
sociedade do conhecimento e da comunicação, está criando, contraditoriamente,
cada vez mais incomunicação e solidão entre as pessoas. A Internet pode
conectar-nos com milhões de pessoas sem precisarmos encontrar alguém. Pode-se
comprar, pagar as contas, trabalhar, pedir comida, assistir a um filme sem
falar com ninguém. Para viajar, conhecer países, visitar pinacotecas não
precisamos sair de casa. Tudo vem à nossa casa via on line.
A relação com a realidade
concreta, com seus cheiros, cores, frios, calores, pesos, resistências e
contradições é mediada pela imagem virtual que é somente imagem. O pé não sente
mais o macio da grama verde. A mão não pega mais um punhado de terra escura, O
mundo virtual criou um novo habitat para o ser humano, caracterizado pelo
encapsulamento sobre si mesmo e pela falta do toque, do tato e do contato
humano.
Essa anti-realidade afeta a vida humana naquilo
que ela possui de mais fundamental: o cuidado e a compaixão. Mitos antigos e
pensadores contemporâneos dos mais profundos nos ensinam que a essência humana
não se encontra tanto na inteligência, na liberdade ou na criatividade, mas
basicamente no cuidado. O cuidado é, na verdade, o suporte real da
criatividade, da liberdade e da inteligência. No cuidado se encontra o ethos*
fundamental do humano. Quer dizer, no cuidado identificamos os princípios, os
valores e as atitudes que fazem da vida um bem-viver e das ações um reto agir.
O tipo de sociedade do conhecimento e da
comunicação que temos desenvolvido nas últimas décadas ameaça a essência
humana. Porventura, não descartou as pessoas concretas com as feições de seus
rostos, com o desenho de suas mãos, com a irradiação de sua presença, com suas
biografias marcadas por buscas, lutas, perplexidades, fracassos e conquistas?
Não colocou sob suspeita e até difamou como obstáculo ao conhecimento objetivo,
o cuidado, a sensibilidade e o enternecimento, realidades tão necessárias sem
as quais ninguém vive e sobrevive com sentido? Na medida em que avança
tecnologicamente na produção e serviço de bens materiais, será que não produz
mais empobrecidos e excluídos, quase dois terços da humanidade, condenados a
morrer antes do tempo?
Nossa meditação procura denunciar semelhante
desvio. Ousamos apresentar caminhos de cura e de resgate da essência humana,
que passam todos pelo cuidado.
Alimentamos a profunda convicção de que o
cuidado, pelo fato de ser essencial, não pode ser suprimido nem descartado. Ele
se vinga e irrompe sempre em algumas brechas da vida. Se assim não fosse,
repetimos, não seria essencial. Onde o cuidado aparece em nossa sociedade? Em
algo muito vulgar, quase ridículo, mas extremamente indicativo: no tamagochi.
O que é o tamagochi? É uma invenção japonesa
dos inícios de 1997. Um chaveirinho eletrônico, com três botões abaixo da
telinha de cristal, que alberga dentro de si um bichinho de estimação virtual.
O bichinho tem fome, come, dorme,
cresce, brinca, chora, fica doente e pode morrer. Tudo depende do cuidado que
recebe ou não de seu dono ou dona.
O tamagochi dá muito trabalho. Como uma
criança, a todo momento deve ser cuidado; caso contrário, reclama com seu bip;
se não for atendido, corre risco. E quem é tão sem coração a ponto de deixar um
bichinho de estimação morrer?
O brinquedo transformou-se numa mania e tem
mudado a rotina de muitas crianças,jovens e adultos que se empenham em cuidar
do tamagochi, dar-lhe de comer, deixá-lo descansar e fazê-lo dormir. O cuidado
faz até o milagre de ressuscitá-lo, caso tenha morrido por falta de atenção e
de cuidado.
Bem disse um perspicaz cronista carioca:
“solidão, seu codinome é tamagochi”. O cuidado pelo bichinho de estimação
virtual denuncia a solidão em que vive o homem/a mulher da sociedade da
comunicação nascente. Mas anuncia também que, apesar da desumanização de grande
parte de nossa cultura, a essência humana não se perdeu. Ela está aí na forma
do cuidado, transferido para um aparelhinho
eletrônico, ao invés de ser investido nas pessoas concretas à nossa volta: na
vovó doente, num colega de escola deficiente físico, num menino ou menina de
rua, no velhinho que vende o pão matinal, nos pobres e marginalizados de nossas
cidades ou até mesmo num bichinho vivo de estimação qual seja um hamster, um
papagaio, um gato ou um cachorro.
O cuidado serve de crítica à nossa civilização
agonizante e também de princípio inspirador de um novo paradigma de
convivialidade.
Sonhamos com um mundo ainda por vir, onde não
vamos mais precisar de aparelhos eletrônicos com seres virtuais para superar
nossa solidão e realizar nossa essência humana de cuidado e de gentileza.
Sonhamos com uma sociedade mundializada, na grande casa comum, a Terra, onde os
valores estruturantes se construirão ao redor do cuidado com as pessoas,
sobretudo com os diferentes culturalmente, com os penalizados pela natureza ou
pela história, cuidado com os espoliados e excluídos, as crianças, os velhos,
os moribundos, cuidado com as plantas, os animais, as paisagens queridas e
especialmente cuidado com a nossa grande e generosa Mãe, a Terra. Sonhamos
com o cuidado assumido como o ethos, fundamental do humano e como compaixão
imprescindível para com todos os seres da criação.
A categoria cuidado se mostrou chave
decifradora da essência humana. O ser humano possui transcendência e por isso
viola todos os tabus, ultrapassa todas as barreiras e se contenta apenas com o
infinito. Ele possui algo de Júpiter dentro de si; não sem razão recebeu dele o
espírito.
O ser
humano possui imanência e por isso se encontra situado num planeta, enraizado
num local e plasmado dentro das possibilidades do espaço-tempo. Ele tem algo da
Tellus/Terra dentro de si; é feito de húmus, donde se deriva a palavra homem.
O ser
humano se encontra sob a regência do tempo. Este não significa um puro correr,
vazio de conteúdos. O tempo é histórico, feito pela saga do universo, pela
prática humana, especialmente pela luta dos oprimidos buscando sua vida e
libertação. Ele se constrói passo a passo, por isso sempre concreto, concretíssimo.
Mas simultaneamente o tempo implica um horizonte utópico, promessa de uma
plenitude futura para o ser humano, para os excluídos e para o cosmos. Somente
buscando o impossível, consegue-se realizar o possível. Em razão dessa
dinâmica, o ser humano possui algo de Saturno, senhor do tempo e da utopia.
Mas não basta dizer tais determinações.
Elas, na verdade, dilaceram o ser humano. Colocam-no distendido e crucificado
entre o céu e a terra, entre o presente e o futuro, entre a injustiça e a luta
pela liberdade.
Que alquimia forjará o elo entre
Júpiter, Tellus/Terra e Saturno? Que energia articulará a transcendência e a
imanência, a história e a utopia, a luta pela justiça e a paz para que
construam o humano plenamente?
A fábula-mito de Higino nos transmite a
sabedoria ancestral: é o cuidado que enlaça todas as coisas; é o cuidado que
traz o céu para dentro da terra e coloca a terra para dentro do céu; é o
cuidado que fornece o elo de passagem da transcendência para a imanência, da
imanência para a transcendência e da história para a utopia. É o cuidado que
confere força para buscar a paz no meio dos conflitos de toda ordem. Sem o
cuidado que resgata a dignidade da humanidade condenada à exclusão, não se
inaugurará um novo paradigma de convivência.
O cuidado
é anterior ao espírito (Júpiter) e ao corpo (Tellus). O espírito se humaniza e
o corpo se vivifica quando são moldados pelo cuidado. Caso contrário, o
espírito se perde nas abstrações e o corpo se confunde com a matéria informe. O
cuidado faz com que o espírito dê forma a um corpo concreto, dentro do tempo,
aberto à história e dimensionado para a utopia (Saturno). É o cuidado que
permite a revolução da ternura ao priorizar o social sobre o individual e ao
orientar o desenvolvimento para a melhoria da qualidade de vida dos humanos e
de outros organismos vivos. O cuidado faz surgir o ser humano complexo,
sensível, solidário, cordial, e conectado com tudo e com todos no universo.
O cuidado
imprimiu sua marca registrada em cada porção, em cada dimensão e em cada dobra
escondida do ser humano. Sem o cuidado o humano se faria inumano.
Tudo o que vive precisa ser alimentado.
Assim o cuidado, a essência da vida humana, precisa também ser continuamente
alimentado. As ressonâncias do cuidado são sua manifestação concreta nas várias
vertebrações da existência e, ao mesmo tempo, seu alimento indispensável. O
cuidado vive do amor primal, da ternura, da carícia, da compaixão, da
convivialidade, da medida justa em todas as coisas. Sem cuidado, o ser humano,
como um tamagochi, definha e morre.
Hoje, na crise do projeto humano,
sentimos a falta clamorosa de cuidado em toda parte. Suas ressonâncias
negativas se mostram pela má qualidade de vida, pela penalização da maioria
empobrecida da humanidade, pela degradação ecológica e pela exaltação
exacerbada da violência.
Não busquemos o caminho da cura fora do
ser humano. O ethos está no próprio ser humano, entendido em sua plenitude que
inclui o infinito. Ele precisa voltar-se sobre si mesmo e redescobrir sua
essência que se encontra no cuidado.
Que o cuidado aflore em todos os
âmbitos, que penetre na atmosfera humana e que prevaleça em todas as relações!
O cuidado salvará a vida, fará justiça ao empobrecido e resgatará a Terra como
pátria e mátria de todos.
Em todas as relações, "o cuidado" se opõe ao
descuido, como diz Boff: "o cuidar é mais que um ato, é uma atitude, é uma
fonte que gera muitos atos".
É nesta atitude
a que se refere Boff que a todo instante somos surpreendidos com um novo modo
de ser, antes oculto, inexpressivo por, quem sabe, estarmos aturdidos, voltados
às pressões externas de curta sustentação que não nos estimulam a voltarmos
para dentro de nós.
Posso concluir que o cuidar é um
exercício constante de amor e compaixão, sem o qual nos tornamos uma mera
executiva de normas pré-estabelecidas, que nos orientam, sem dúvida, porém são
insuficientes quando diante dos enigmas do ser humano.
Esta obra nos remete a uma
visão que faz muito sentido. Se não cuidarmos dos nossos, tendemos a nos deteriorar,
interior e exteriormente, material e espiritualmente. O ser humano, assim como
o planeta, é comparável a uma máquina que precisa ser azeitada e reapertada
constantemente para que funcione bem.
Fontes bibliográficas:
BOFF, L. Saber Cuidar: ética do humano-compaixão pela terra. 10ª ed.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.
JOSENILTON DE SOUSA E SILVA - acadêmico de direito da Faculdade UNAERP Guarujá.