sexta-feira, 6 de julho de 2012

SABER CUIDAR resenha


           A sociedade contemporânea, chamada sociedade do conhecimento e da comunicação, está criando, contraditoriamente, cada vez mais incomunicação e solidão entre as pessoas. A Internet pode conectar-nos com milhões de pessoas sem precisarmos encontrar alguém. Pode-se comprar, pagar as contas, trabalhar, pedir comida, assistir a um filme sem falar com ninguém. Para viajar, conhecer países, visitar pinacotecas não precisamos sair de casa. Tudo vem à nossa casa via on line.
A relação com a realidade concreta, com seus cheiros, cores, frios, calores, pesos, resistências e contradições é mediada pela imagem virtual que é somente imagem. O pé não sente mais o macio da grama verde. A mão não pega mais um punhado de terra escura, O mundo virtual criou um novo habitat para o ser humano, caracterizado pelo encapsulamento sobre si mesmo e pela falta do toque, do tato e do contato humano.  
        Essa anti-realidade afeta a vida humana naquilo que ela possui de mais fundamental: o cuidado e a compaixão. Mitos antigos e pensadores contemporâneos dos mais profundos nos ensinam que a essência humana não se encontra tanto na inteligência, na liberdade ou na criatividade, mas basicamente no cuidado. O cuidado é, na verdade, o suporte real da criatividade, da liberdade e da inteligência. No cuidado se encontra o ethos* fundamental do humano. Quer dizer, no cuidado identificamos os princípios, os valores e as atitudes que fazem da vida um bem-viver e das ações um reto agir.
        O tipo de sociedade do conhecimento e da comunicação que te­mos desenvolvido nas últimas décadas ameaça a essência humana. Porventura, não descartou as pessoas concretas com as feições de seus rostos, com o desenho de suas mãos, com a irradiação de sua presença, com suas biografias marcadas por buscas, lutas, perplexidades, fracassos e conquistas? Não colocou sob suspeita e até difamou como obstáculo ao conhecimento objetivo, o cuidado, a sensibilidade e o enternecimento, realidades tão necessárias sem as quais ninguém vive e sobrevive com sentido? Na medida em que avança tecnologicamente na produção e serviço de bens materiais, será que não produz mais empobrecidos e excluídos, quase dois terços da humanidade, condenados a morrer antes do tempo?
        Nossa meditação procura denunciar semelhante desvio. Ousamos apresentar caminhos de cura e de resgate da essência humana, que passam todos pelo cuidado.
       Alimentamos a profunda convicção de que o cuidado, pelo fato de ser essencial, não pode ser suprimido nem descartado. Ele se vinga e irrompe sempre em algumas brechas da vida. Se assim não fosse, repetimos, não seria essencial. Onde o cuidado aparece em nossa sociedade? Em algo muito vulgar, quase ridículo, mas extremamente indicativo: no tamagochi.
        O que é o tamagochi? É uma invenção japonesa dos inícios de 1997. Um chaveirinho eletrônico, com três botões abaixo da telinha de cristal, que alberga dentro de si um bichinho de estimação virtual.
        O bichinho tem fome, come, dorme, cresce, brinca, chora, fica doente e pode morrer. Tudo depende do cuidado que recebe ou não de seu dono ou dona.
        O tamagochi dá muito trabalho. Como uma criança, a todo momento deve ser cuidado; caso contrário, reclama com seu bip; se não for atendido, corre risco. E quem é tão sem coração a ponto de deixar um bichinho de estimação morrer?
            O brinquedo transformou-se numa mania e tem mudado a ro­tina de muitas crianças,jovens e adultos que se empenham em cuidar do tamagochi, dar-lhe de comer, deixá-lo descansar e fazê-lo dormir. O cuidado faz até o milagre de ressuscitá-lo, caso tenha morrido por falta de atenção e de cuidado.
        Bem disse um perspicaz cronista carioca: “solidão, seu codinome é tamagochi”. O cuidado pelo bichinho de estimação virtual denuncia a solidão em que vive o homem/a mulher da sociedade da comunicação nascente. Mas anuncia também que, apesar da desumanização de grande parte de nossa cultura, a essência humana não se perdeu. Ela está aí na forma do cuidado, transferido para um aparelhinho eletrônico, ao invés de ser investido nas pessoas concretas à nossa volta: na vovó doente, num colega de escola deficiente físico, num menino ou menina de rua, no velhinho que vende o pão matinal, nos pobres e marginalizados de nossas cidades ou até mesmo num bichinho vivo de estimação qual seja um hamster, um papagaio, um gato ou um cachorro.
         O cuidado serve de crítica à nossa civilização agonizante e também de princípio inspirador de um novo paradigma de convivialidade.
         Sonhamos com um mundo ainda por vir, onde não vamos mais precisar de aparelhos eletrônicos com seres virtuais para superar nossa solidão e realizar nossa essência humana de cuidado e de gentileza. Sonhamos com uma sociedade mundializada, na grande casa comum, a Terra, onde os valores estruturantes se construirão ao redor do cuidado com as pessoas, sobretudo com os diferentes culturalmente, com os penalizados pela natureza ou pela história, cuidado com os espoliados e excluídos, as crianças, os velhos, os moribundos, cuidado com as plantas, os animais, as paisagens queridas e especial­mente cuidado com a nossa grande e generosa Mãe, a Terra. Sonha­mos com o cuidado assumido como o ethos, fundamental do humano e como compaixão imprescindível para com todos os seres da criação.
            A categoria cuidado se mostrou chave decifradora da essência humana. O ser humano possui transcendência e por isso viola todos os tabus, ultrapassa todas as barreiras e se contenta apenas com o infinito. Ele possui algo de Júpiter dentro de si; não sem razão recebeu dele o espírito.
        O ser humano possui imanência e por isso se encontra situado num planeta, enraizado num local e plasmado dentro das possibilidades do espaço-tempo. Ele tem algo da Tellus/Terra dentro de si; é feito de húmus, donde se deriva a palavra homem.
        O ser humano se encontra sob a regência do tempo. Este não significa um puro correr, vazio de conteúdos. O tempo é histórico, feito pela saga do universo, pela prática humana, especialmente pela luta dos oprimidos buscando sua vida e libertação. Ele se constrói passo a passo, por isso sempre concreto, concretíssimo. Mas simultaneamente o tempo implica um horizonte utópico, promessa de uma plenitude futura para o ser humano, para os excluídos e para o cosmos. Somente buscando o impossível, consegue-se realizar o possível. Em razão dessa dinâmica, o ser humano possui algo de Saturno, senhor do tempo e da utopia.
         Mas não basta dizer tais determinações. Elas, na verdade, dilaceram o ser humano. Colocam-no distendido e crucificado entre o céu e a terra, entre o presente e o futuro, entre a injustiça e a luta pela liberdade.
         Que alquimia forjará o elo entre Júpiter, Tellus/Terra e Saturno? Que energia articulará a transcendência e a imanência, a história e a utopia, a luta pela justiça e a paz para que construam o humano plenamente?
         A fábula-mito de Higino nos transmite a sabedoria ancestral: é o cuidado que enlaça todas as coisas; é o cuidado que traz o céu para dentro da terra e coloca a terra para dentro do céu; é o cuidado que fornece o elo de passagem da transcendência para a imanência, da imanência para a transcendência e da história para a utopia. É o cuidado que confere força para buscar a paz no meio dos conflitos de toda ordem. Sem o cuidado que resgata a dignidade da humanidade condenada à exclusão, não se inaugurará um novo paradigma de convivência.
        O cuidado é anterior ao espírito (Júpiter) e ao corpo (Tellus). O espírito se humaniza e o corpo se vivifica quando são moldados pelo cuidado. Caso contrário, o espírito se perde nas abstrações e o corpo se confunde com a matéria informe. O cuidado faz com que o espírito dê forma a um corpo concreto, dentro do tempo, aberto à história e dimensionado para a utopia (Saturno). É o cuidado que permite a revolução da ternura ao priorizar o social sobre o individual e ao orientar o desenvolvimento para a melhoria da qualidade de vida dos humanos e de outros organismos vivos. O cuidado faz surgir o ser humano complexo, sensível, solidário, cordial, e conectado com tudo e com todos no universo.
        O cuidado imprimiu sua marca registrada em cada porção, em cada dimensão e em cada dobra escondida do ser humano. Sem o cuidado o humano se faria inumano.
         Tudo o que vive precisa ser alimentado. Assim o cuidado, a essência da vida humana, precisa também ser continuamente alimentado. As ressonâncias do cuidado são sua manifestação concreta nas várias vertebrações da existência e, ao mesmo tempo, seu alimento indispensável. O cuidado vive do amor primal, da ternura, da carícia, da compaixão, da convivialidade, da medida justa em todas as coisas. Sem cuidado, o ser humano, como um tamagochi, definha e morre.
         Hoje, na crise do projeto humano, sentimos a falta clamorosa de cuidado em toda parte. Suas ressonâncias negativas se mostram pela má qualidade de vida, pela penalização da maioria empobrecida da humanidade, pela degradação ecológica e pela exaltação exacerbada da violência.
         Não busquemos o caminho da cura fora do ser humano. O ethos está no próprio ser humano, entendido em sua plenitude que inclui o infinito. Ele precisa voltar-se sobre si mesmo e redescobrir sua essência que se encontra no cuidado.
         Que o cuidado aflore em todos os âmbitos, que penetre na atmosfera humana e que prevaleça em todas as relações! O cuidado salvará a vida, fará justiça ao empobrecido e resgatará a Terra como pátria e mátria de todos.
          Em todas as relações, "o cuidado" se opõe ao descuido, como diz Boff: "o cuidar é mais que um ato, é uma atitude, é uma fonte que gera muitos atos".
 É nesta atitude a que se refere Boff que a todo instante somos surpreendidos com um novo modo de ser, antes oculto, inexpressivo por, quem sabe, estarmos aturdidos, voltados às pressões externas de curta sustentação que não nos estimulam a voltarmos para dentro de nós.
Posso concluir que o cuidar é um exercício constante de amor e compaixão, sem o qual nos tornamos uma mera executiva de normas pré-estabelecidas, que nos orientam, sem dúvida, porém são insuficientes quando diante dos enigmas do ser humano.
          Esta obra nos remete a uma visão que faz muito sentido. Se não cuidarmos dos nossos, tendemos a nos deteriorar, interior e exteriormente, material e espiritualmente. O ser humano, assim como o planeta, é comparável a uma máquina que precisa ser azeitada e reapertada constantemente para que funcione bem.

Fontes bibliográficas:
BOFF, L. Saber Cuidar: ética do humano-compaixão pela terra. 10ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.

JOSENILTON DE SOUSA E SILVA - acadêmico de direito da Faculdade UNAERP Guarujá.

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